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Direito no Dia a Dia

O FIM DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO?



“Eu acho que o Estado, em certas circunstâncias, responde objetivamente, mas em outras só responde subjetivamente, se houver dolo ou culpa.”

A frase é do ministro Barroso, do STF, ao julgar o RE 727347, no qual a União procura se eximir de indenizar um concurseiro que foi tardiamente investido no cargo, e apenas por decisão judicial.
O recurso tem repercussão geral, e sua tese se aplicará a mais de 100 processos que aguardam o resultado deste julgamento.

Se s tese do ministro Barroso for admitida pela maioria da Corte se estará, de certa forma, esvaziando o teor do § 6º. do Art. 37 da Constituição Federal. Veja-se:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 
...
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
             
O texto do § 6º tem duas partes notórias. 

A primeira indica que o Estado responderá pelos prejuízos causados por seus agentes. Nesse caso, a responsabilidade é objetiva. Basta haver o evento danoso e o nexo causal entre a atividade do agente e o dano para que o Estado responda. 

A parte subjetiva do dispositivo legal é reservada para a possibilidade de o Estado exercer o direito de regresso contra os agentes que agem com dolo ou culpa.

Não se trata de responder o Estado apenas quando houver dolo ou culpa, mas de poder exigir do agente a reparação do prejuízo sofrido quando o próprio agente agir com dolo ou culpa.

Até o presente temos dois votos a favor do concurseiro – ministros Marco Aurélio, relator, e Fux - e dois a favor da União – ministros Barroso e Dias Tófoli -, embora o presidente da Corte, ministro Lewandovski, também tenha indicado que provavelmente acompanhará o relator.

O ministro Teori Zavaski pediu vista, mas já se pronunciou em outros casos a favor da tese da União de que não seria cabível pagar ao concursando a indenização correspondente ao tempo em que ficou à espera de sua investidura até o trânsito em julgado da decisão judicial.

A tese da União é de que o pagamento ao concurseiro constituiria enriquecimento sem causa, porque não poderia obter remuneração sem efetiva prestação de serviço. O ministro Marco Aurélio entende que não se trata de remuneração, mas indenização pelo dano sofrido pela atuação ilegítima do Estado, para a qual a remuneração que receberia se estivesse no cargo serve apenas de parâmetro de fixação do quantum indenizatório.

Uma questão que precisa ser respondida, e que foi suscitada pelo relator, é que se for admitida a tese de que o concursando investido por ordem judicial não pode ser indenizado por um período em que não prestou serviço ao Estado o mesmo se aplicaria a quem é demitido injustamente do serviço público e reintegrado por ordem judicial?

O risco é se abrir uma vereda para que o Estado atue de forma ilegal e não tenha de responder pelos danos causados.

Se a tese do ministro Barroso for vencedora, como ficará a responsabilidade objetiva do Estado?
Uma decisão judicial contrária não é suficiente para caracterizar a ilegitimidade da atuação estatal, uma vez que só se produz quando há ofensa aos princípios constitucionais e administrativos, como a legalidade, a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal, e assim por diante?

Estamos na iminência de se estabelecer por decisão da Corte Constitucional um precedente que tornará inócuos os princípios constitucionais da indenizabilidade e da responsabilidade do Estado, que se tornará, a despeito de outros agentes que não podem se eximir da responsabilidade objetiva, um ente todo-poderoso de inspiração hobbesiana.

Vamos aguardar o desfecho deste julgamento.



LAERTE TENTA MATAR VIRGÍLIO. 
E NOVELA MATA O DIREITO PENAL.

  
Mais uma vez a dramaturgia, no afã de proporcionar emoções ao público, acaba desinformando de maneira acintosa.

O personagem Laerte, da novela “Em família”, transmitida pela Rede Globo, foi julgado por tentar matar seu colega Virgílio por ciúme de Helena, durante uma briga começada por Virgílio depois de uma provocação verbal.  Laerte apanhou uma espora e desferiu um golpe no rosto de Virgílio, que em seguida caiu, bateu a cabeça e aparentemente morreu. Desesperado, Laerte procurou apagar todos os vestígios daquilo que supunha ser um assassinato e enterrou Virgílio num bosque sem saber que ele ainda vivia.

No seu julgamento, a sentença do corpo de jurados foi pela condenação por tentativa de homicídio, não se levando em conta que, sendo de menor porte físico e estando no calor de uma briga, Laerte estaria agindo em legítima defesa ou, no mínimo, o crime seria de lesões corporais.

O crime de obstrução à justiça por tentar ocultar os vestígios do crime sequer foi considerado.

Na fixação da pena base no mínimo de seis anos, porque era réu primário, apenas o atenuante de ter desferido apenas um golpe e parado a agressão imediatamente foi considerado.

Só que a pena foi reduzida em 5/6, caindo para apenas um ano!

Embora Laerte não conseguisse matar Virgílio, o drama conseguir disparar três tiros fatais contra o Direito Penal.

Primeiro, a legítima defesa deveria ser considerada.

 Segundo, o Ministério Público novelístico cochilou ao não pedir a imputação por obstrução á justiça.

 Terceiro, as circunstâncias atenuantes não podem reduzir a pena abaixo do mínimo legal previsto para a pena base. Este entendimento do Superior Tribunal de Justiça tem uma lógica cristalina: se possível a redução da pena abaixo da pena base por circunstâncias atenuantes, a majoração acima da pena máxima por circunstâncias agravantes também seria possível, mas é claro que isso violaria literalmente a lei penal.






AMOR À VIDA E A QUESTÃO DA PRESCRIÇÃO DOS CRIMES DE FÉLIX E PILAR


 Na novela Amor à Vida, transmitida pela Rede Globo, uma questão que envolve a prescrição da pretensão punitiva do Estado para o crime de homicídio tem sido objeto de discussões. É evidente que na teledramaturgia nem sempre os autores se preocupam com o rigor jurídico e compõem suas tramas de forma a torná-las mais atraentes para o público.

Dois casos práticos estão em destaque na novela.

O primeiro foi o crime cometido por Félix ( ) de subtrair a filha de sua irmã Paola,  Paulinha, logo que essa nasceu e atirá-la em uma caçamba para que morresse. Quando o crime foi revelado e o autor descoberto, lançou-se no enredo da novela a ideia de que já não se poderia fazer mais nada contra o vilão, pois o crime estaria prescrito.

Outro caso ainda está para ser revelado nesta semana, quando provavelmente a esposa de César, Pilar, confessará em reunião de família que foi a responsável pela morte da mãe de Aline, que mantinha um caso amoroso com seu marido. Ao que tudo indica, a mesma defesa da prescrição, por se tratar de crime de homicídio cometido há mais de 20 anos, também será usada para que Pilar não enfrente as grades.

No nosso Código Penal, os crimes cometidos por Félix e Pilar são de ação pública incondicionada, ou seja, não há necessidade de representação das vítimas para que a ação penal seja promovida pelo Ministério Público, e os prazos se contam, segundo o artigo 111 do CP, da data em que o crime produziu seu resultado. Somente os crimes de ação penal privada condicionada têm o prazo de decadência, a partir do conhecimento da autoria, para que a vítima represente ao Ministério Público ( o que pode ser feito no ato da comunicação do crime na delegacia). No entanto, se até seis meses após o prazo de prescrição dos crimes de ação penal pública incondicionada o Ministério Público não iniciar a ação penal, a vítima ou interessado poderá fazê-lo, conforme o parágrafo 3 do artigo 100 do CP.

Os prazos de prescrição dos crimes da novela são de 20 anos para o homicídio qualificaddo cometido por Pilar, porque esse tem pena mínima de doze anos (art. 109, inciso I, CP). No crime de Félix trata-se de tentativa de homicídio duplamente qualificado, pois a vítima não tinha condição de defesa e o motivo era fútil. A pena é a mesma do homicídio qualificado (12 a 30 anos), reduzida de um a dois terços.

Ou seja, ele estaria sujeito a uma pena de 8 a 20 anos ou de 4 a 10 anos, dependendo da redução aplicada pelo juiz.

Para crime com pena entre oito e doze anos, a prescrição ocorre em 16 anos, e para crimes com prescrição entre 4 e 8 anos, a prescrição ocorre em 12 anos. 

Como a redução só pode ser determinada com o desenvolvimento do processo, a questão é se deve prevalecer a redução mínima ou a redução máxima como parâmetro de contagem de prescrição.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que no caso da tentativa, deve-se tomar em conta a pena máxima do crime. Portanto, como parece que Paulinha tem mais de 12  e menos de 16 anos, o crime de Félix ainda não estaria prescrito, pois mesmo que obtivesse redução de dois terços, seria punido com  no máximo 10 anos de reclusão, aplicando-se a prescrição de 16 anos.



INCÊNDIO EM SANTA MARIA: CULPA OU DOLO?


O lamentável episódio que resultou, ontem, na morte de 233 jovens e mais de 150 feridos em um incêndio na casa noturna Kiss, de Santa Maria, cidade de cerca de 270 mil habitantes, na região central do Rio Grande do Sul, além da comoção geral, traz à tona a discussão sobre a modalidade de imputação criminal dos agentes responsáveis direta ou indiretamente pela tragédia.

O Código Penal Brasileiro, em sua parte especial, traz diferentes conceitos sobre o elemento subjetivo do crime, ou seja, a motivação de que se reveste o autor ao cometê-lo.

O principal deles é o dolo. Dolo significa uma predisposição para cometer o crime. O crime é planejado e o resultado é desejado. Como regra geral, só existe crime se há dolo, e a exceção são os casos em que a lei determina expressamente que o crime cometido sem dolo, mas com culpa, seja punido.

A culpa ocorre quando o agente não deseja cometer o crime, mas age com imperícia, imprudência ou negligência.

Há também o dolo eventual, em que o agente, embora não deseje o resultado, atua de certa forma a correr o risco de que esse ocorra.

Na modalidade culpa, existe também a culpa consciente, que muitas vezes se confunde com o dolo eventual, mas tem uma diferença sutil.

Enquanto que no dolo eventual o agente assume o risco do resultado, na culpa consciente o agente acredita, confiando em sua pericia, que o resultado não ocorrerá, mesmo que sua ação seja conducente a ele.

Recentemente, as autoridades policiais têm considerado que os acidentes de trânsito causados por pessoas embriagadas, que resultam em morte ou lesões corporais em terceiros, são crimes dolosos, utilizando-se do conceito do dolo eventual, segundo o qual tais motoristas, ao dirigirem embriagados, estariam assumindo o risco do resultado.

Essa tipificação (classificação do crime) certamente será objeto de vários debates judiciais à medida que os processos criminais sob tal conceito chegarem a suas fases conclusivas, visto que muitos acadêmicos consideram que, no caso de embriaguez ao volante ou de direção em alta velocidade, o que existe é a culpa consciente, pois os motoristas atuam com a crença de que, embora haja riscos, não ocorrerão acidentes, confiando em sua lucidez ou habilidade.

No caso do incêndio na boate Kiss, há vários agentes sujeitos a indiciamento no inquérito criminal que se instaurará: os proprietários da boate, por não terem providenciado o alvará de funcionamento para seguir em atividade; os músicos que planejaram o disparo do sinalizador e o músico que o disparou, a pessoa que deu a ordem para fechar as portas temendo que frequentadores saíssem sem pagar, e mesmo o responsável pela concessão do alvará na esfera da administração pública municipal.

Analisando cada um, pode-se dizer que os proprietários do estabelecimento agiram com dolo eventual, pois ao manterem a casa em funcionamento sem a vistoria do corpo de bombeiros e a obtenção do alvará, assumiram os riscos do resultado. Nesse caso, entendo que não se pode falar de culpa consciente, pois não se pode dizer que os proprietários confiassem em sua habilidade ou destreza na condução do negócio, uma vez que o incêndio na casa noturna decorreu de causas que não podem ser razoavelmente ligadas à perícia ou destreza dos proprietários, mas daquilo que se chama de caso fortuito - um acontecimento surpreendente, mas previsível, que poderia ser evitado pela ação humana. Os jornais informaram, ontem, que os proprietários seriam indiciados por homicídio culposo, mas nesse caso entendo que houve nitidamente a assunção do risco do resultado com o fato de manterem a casa de espetáculo funcionando sem a vistoria rotineira dos bombeiros e a renovação do alvará, que se dá geralmente após essa vistoria.

No caso dos músicos que planejaram ou do que executou o disparo do sinalizador, existem normas que proíbem expressamente o uso de fogos de artifícios em tais estabelecimentos, e o Código Penal tipifica também tipifica como crime colocar a vida de terceiros em perigo. Portanto, mesmo que não tenham tido a intenção de matar tantos jovens, mas de diverti-los, o crime está caracterizado. Nesse caso, porém, qual seria o elemento subjetivo? Agiram com culpa consciente porque confiavam em sua habilidade de manejar os fogos ou com dolo eventual, por saberem que o seu uso poderia causar o resultado, especialmente quando se sabe da existência de legislação proibitiva? São vários os casos de acidentes com grande número de mortes em situações semelhantes, ocorridos nos últimos anos em diversos países. Isso, no meu entender, afasta qualquer tipo de desconhecimento do resultado provável, emergindo assim a ocorrência do dolo eventual.

Quanto ao gerente da boate, que ordenou o fechamento dos portões, se efetivamente desconhecia que estivesse ocorrendo um incêndio, mas temia que se tratasse de um tumulto e que frequentadores pudessem sair sem pagar a conta, não se pode falar em dolo relativamente à morte dos jovens. Contudo, tratando-se de pessoa encarregada do estabelecimento, há nítida imprudência de sua parte, pois mesmo que se tratasse de um tumulto qualquer os demais frequentadores teriam o direito de sair para não serem atingidos.  Haveria, pois, nexo causal entre a ação do gerente e o resultado que sobreveio, pois o fechamento das portas contribuiu para o resultado, mas dificilmente se poderia falar em dolo. Estaríamos então diante de mera culpa, por imperícia do gerente, ou do dolo eventual, pois ao mandar fechar as portas ele estaria assumindo o risco do resultado? Como o resultado morte por asfixia ou queimadura não seria jamais esperado pelo gerente, se for verdade que achava se tratar de mero tumulto, entendo ser difícil caracterizar o dolo eventual, mas restaria a culpa, por imprudência, sujeitando-o ao indiciamento por homicídio culposo.

No caso dos seguranças que cumpriram a ordem não se afasta a culpabilidade, pois ante o perigo eminente eles poderiam desobedecer, mas como agiram sob ordem superior sua culpa poderá ser atenuada.

Resta analisar, então, a possível imputação do responsável pela emissão de alvarás e sua fiscalização. Parece que houve negligência de servidor público no cumprimento de suas funções, característica de culpa. Se for descoberto algum tipo de ato de corrupção (ativa ou passiva) para manter o estabelecimento a funcionar sem o alvará (que só é emitido depois do laudo do corpo de bombeiros) o caso poderá se tornar ainda mais grave, com a acumulação de crime contra a administração pública.

Somente as investigações poderão determinar o envolvimento e o grau de participação de cada agente, mas fica, além das questões teóricas, a lição de que as autoridades públicas devem ser mais exigentes na fiscalização de estabelecimentos em que há grande concentração humana, como casas de show, centros de convenção, igrejas e assim por diante, e que, no caso, a mera imputação de culpa, em vez de dolo, pode estar saindo barato e incentivando a repetição de acontecimentos tão desastrosos, uma vez que as penas dos crimes culposos são sempre bem menores do que as dos crimes em que há dolo ou dolo eventual. 





AS QUESTÕES POLÊMICAS QUE MARCARAM O JULGAMENTO DA LEI DA FICHA LIMPA

A declaração de constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa pelo STF esta semana foi resultado de debates polêmicos e um resultado por apertada maioria (6x5). 

A inelegibilidade de candidatos que tenham praticado certos crimes (veja na seção Aconteceu) deveria ser aplicada também àqueles que já tivessem sido processados e julgados anteriormente e que ainda se encontrassem no período de espera de oito anos? Seria necessário, no caso,  respeitar o princípio da irretroatividade da lei?

Poderia atingir candidatos cujas decisões, mesmo que prolatadas por órgãos colegiados, como os tribunais de segunda instância e o tribunal do júri, que julga crimes dolosos contra a vida, ainda não tivessem transitado em julgado, ou seja, se tornado definitivas?

Não pretendemos repetir aqui o debate que se travou, cuja íntegra pode ser acessada nos votos dos ministros disponibilizados no artigo acima citado, mas fazer apenas algumas considerações sobre as duas questões cruciais para a tomada de decisão.


IRRETROATIVIDADE


Primeiro, a irretroatividade da lei visa não atingir atos pretéritos quando novo diploma legal entra no mundo jurídico. 

No entanto, o próprio STF tem prolatado reiteradas decisões sobre a inexistência de garantia a regime jurídico. 

É o caso, por exemplo, da aceitação pela suprema corte das alterações que afetaram os saldos de FGTS no chamado Plano Collor 2, quando as regras de cálculo da correção monetária foram alteradas, gerando uma significativa perda para os fundiários. O argumento do supremo foi de que, sendo uma relação estatutária (regida pela lei), não contratual entre as partes, os fundiários não faziam jus ao regime de cálculo dos juros. 

O mesmo princípio se aplicou também para permitir a aplicação do fator previdenciário para diminuir o valor do salário de benefício dos que se aposentassem por tempo contribuição em função de sua idade, independentemente de terem começado a trabalhar quando não existia esse critério de ajuste.

Não é outro o caso da elegibilidade. 

Seus critérios decorrem de lei, não de contrato.  

A lei nova que estabelece novos critérios de inelegibilidade sofre apenas a ressalva de não poder ser aplicada no mesmo ano eleitoral, como o STF já decidira antes, mas não pode se valer do princípio da irretroatividade por dois motivos. Primeiro, pelo regime estatutário em que se inserem os candidatos e os órgãos de controle eleitoral, administrativos ou judiciários. Segundo, porque, de fato, a Lei da Ficha Limpa não se aplica a candidaturas anteriores e a mandatos em vigor, mas apenas aos novos atos de inscrição para o certame eleitoral. 

As exigências da Lei da Ficha Limpa, que são resposta a um clamor social após a revelação de inúmeros escândalos, especialmente nos escalões mais altos da administração pública, significam um novo regime jurídico, ao qual não se pode opor o direito adquirido daqueles que “estão sujos”. 

É como se uma senhora dissesse aos filhos que a partir de agora ninguém entra com areia da praia em casa e um deles se opusesse, dizendo que já tinha se sujado na pria quando foi instituída a regra. Como o propósito é preservar a higiene do lar, a resposta da zelosa senhora não poderia ser outra:

-Limpe-se e entre.

Os candidatos a cargos públicos que incidiram em uma das vedações constantes na lei da ficha limpa não estão eternamente condenados a ficar à margem do processo eleitoral, mas a guardar um período de quarentena, que atende a valores sociais mais elevados do que seus meros interesses políticos. 

Como não estão proibidos de atuar nos partidos nem de servir à sociedade de outras formas, se tiverem efetivamente se retratado e pretenderem atuar com espírito de cidadania, haverá formas de fazê-lo.


TRÃNSITO EM JULGADO?

Quanto ao segundo ponto de discussão, a necessidade de trânsito em julgado das decisões condenatórias por órgãos colegiados para que a inelegibilidade se caracterize, é também importante lembrar que, como regra geral, as decisões dos órgãos colegiados, quando recorridas, não têm efeito suspensivo. 

Ou seja, num caso de um processo civil, por exemplo, a partir da decisão do órgão colegiado de segunda instância, os recursos de sobreposição aos tribunais superiores são recebidos sem efeito suspensivo, permitindo a imediata execução provisória das decisões dos tribunais. 

Por outro lado, as decisões do tribunal do júri não podem sequer ser alteradas pelos tribunais estaduais, que se limitam, nas apelações, a examinar a validade formal do julgamento, podendo apenas anulá-lo para que se julgue novamente, mas não mudar a decisão do conselho de sentença.

Está evidente, portanto, que ao estabelecer a inelegibilidade antes do trânsito em julgado, mas após decisões que à normalidade são passíveis de execução imediata, mesmo que provisória, o legislador pretendeu conferir à sociedade, o que permitam dizer, a possibilidade cautelar de executar as decisões em face de candidatos condenados em segunda instância ou pelo tribunal do júri. 

Como demonstrou estatisticamente o ministro Gilmar Mendes em seu voto, ao defender a necessidade do trânsito em julgado, a reforma de decisões pelo STF situa-se na faixa de 26%. 

Mas a maioria dos ministros parece ter entendido que é melhor cometer uma injustiça contra 26% dos candidatos desqualificados do que permitir que os demais 74% ocupem cargos públicos e coloquem em risco a saúde administrativa, política e institucional do país.


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CASO ELOÁ: JUÍZA QUER PROCESSAR ADVOGADA DE DEFESA. MAS EXISTE OU NÃO O PRINCÍPIO DA BUSCA DA VERDADE?



A juíza Milena Dias, da Vara do Júri da Comarca de Santo André, representou ao Ministério Público para processar a advogada de defesa Ana Lúcia Assad por crime contra a honra e desacato. Segundo noticiou a imprensa, no próprio corpo da sentença há a determinação de extração de cópia ao parquet para que se inicie o processo contra a defensora. 


O incidente que deu origem ao entrevero se deu no julgamento de Lindemberg Alves, que foi condenado a 98 anos e 10 meses pelo assasinato da menina Elóa e outros crimes.


Ao requerer à juíza que fosse ouvida novamente uma testemunha, invocando o principio da "descoberta da verdade", a juíza indeferiu o pedido, dizendo que esse princípio "não existe ou tem outro nome".


Ante isso, a advogada de defesa disparou:


 - Então a senhora precisa voltar a estudar!


O incidente causou constrangimento. 

Quando todos pensavam que a questão havia sido relevada com o prosseguimento dos tragalhos, a notícia do pretenso processo por crime contra a honra e desacato abriu os noticiários de hoje.


Abstraindo o clima de tensão que se estabeleceu durante o julgamento, que leva às vezes juízes, promotores e advogados de defesa e advogados assistentes da acusação a perderem o controle e transbordar dos limites da urbanidade que deve imperar, é um fato que a magistrada indeferiu a nova oitiva da testemunha alegando a não existência ou nomenclatura diferente de um princípio que, na verdade, é um dos fundamentos do direito penal e do direito do trabalho. 


O problema é que ele é conhecido por vários nomes.


Trata-se do princípio da verdade real faz com que se busque, especialmente nos processos do trabalho e penal, não meramente aquilo que existe formalmente ou é pressuposto ou derivado de ficção jurídica.


Diomar Ackel Filho ensina que a verdade que se busca no processo se revela de duas formas:


No processo civil, com a admissão das presunções que determinam a chamada verdade ficta. No processo penal, com a rejeição das ficções e das verdades retratadas de modo artificial, por obra das indigitadas presunções. No processo civil prepondera, portanto, a verdade forma e no processo penal, a verdade real

(Verdade formal e verdade real. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1988, p. 8, citado em SOARES, Clara Dias. A verdade no processo penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1749, 15 abr. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11160>. Acesso em: 17 fev. 2012.) 


No entanto, o princípio da verdade real também é conhecido como princípio da verdade material ou princípio da verdade substancial. 


Tal princípio, explica Clara Dias Soares no artigo acima “determina que o fato investigado no processo deve corresponder ao que está fora dele, em toda sua plenitude, sem quaisquer artifícios, sem presunções, sem ficções. Para a esfera processual penal, na qual, em regra, predomina a  indisponibilidade de interesses, não é suficiente o que tem a simples aparência de verdadeiro, razão pela qual deve-se procurar introduzir no processo o retrato que mais se aproxime da realidade”.


Pode ser que ao estudar esse importante princípio do direito penal a defensora e a magistrada tenham sido apresentadas a ele sob denominações diversas, e isso causou o desacordo. 

Resta saber se o desentendimento terminológico, além dos processos anunciados, poderá levar também a defesa a pedir a anulação do julgamento por cerceamento da defesa...


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A PROIBIÇÃO DA GREVE DOS POLICIAIS MILITARES EM FACE DOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA VALORIZAÇÃO DO TRABALHO


A crise que envolve a greve dos policiais militares da Bahia ultrapassa os limites econômicos e sociais que deflagraram a paralização para dar ensejo a controvérsias jurídicas sobre a ilegalidade do movimento.

De plano, a interpretação dos que condenam a greve se socorre do artigo 142 da Constituição Federal, que estabelece ser vedada aos militares a organização sindical e a greve.

Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal interpretam o referido artigo como uma vedação geral a que qualquer grupo miliciano armado possa se valer da greve ou apontam a necessidade de preservação da segurança e a decorrente incompatibilidade da greve dos grupos armados. Outros falam da primazia dos conceitos de hierarquia e disciplina, a serem seguidos pelos policiais militares, sobre o direito de greve. Nas casas parlamentares, as opiniões se dividem.

A questão, do ponto de vista constitucional, não é de solução simples.

Não há dúvida de que a Constituição garante o direito de greve aos funcionários públicos. Tal direito decorre da tutela aos valores sociais do trabalho e ao princípio da dignidade da pessoa humana. O ser humano em sua função de trabalhador muitas vezes não tem outro recurso para obter o equilíbrio nas relações de trabalho, de onde tira o sustento e os recursos que lhe permitem a vida digna. Tem na paralização breve momento em que sua hipossuficiência em relação aos empregadores privados ou públicos se atenua , dando-lhe força de negociação pela necessidade da retomada dos serviços prestados.

Socorrendo-nos da hermenêutica constitucional, é um princípio que as normas garantidoras de direitos e garantias devem ser interpretadas extensivamente. Do contrário, as normas que restringem tais direitos e garantias devem ser interpretadas no limite de seu enunciado.

Sob tal prisma, partindo do pressuposto de que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho foram eleitos pelo legislador constitucional como dois dos cinco fundamentos da nossa Carta Cidadã, é de duvidosa precisão a interpretação de que os policiais militares e civis são, em sentido estrito, militares impedidos de se sindicalizar e fazer greve.

O termo militar, nesse sentido, se aplicaria somente aos membros das Forças Armadas, Exército, Marinha e Aeronáutica.

Outra questão a ser resolvida ao se conferir interpretação extensiva ao termo militar, empregado no artigo 142 da CF, é se, considerando-se os policiais militares como militares porque utilizam armas, o mesmo se aplicaria aos membros da polícia civil. Seriam eles militares porque usam armas? Seriam civis com direito de greve?

Alguns julgados do STF têm equiparado a polícia civil aos policiais militares e aos militares, sob o princípio de que exercem função de coesão social cuja ruptura é inadmissível.

O movimento da Bahia coloca em cheque esses julgados do ponto de vista da efetividade da norma, ou seja, da capacidade que a norma tem de ser aceita socialmente. A realidade social está a evidenciar que a norma proibitiva vem perdendo sua eficácia por não encontrar receptividade no seio da sociedade. As paralizações de corporações policias miliares e civis têm-se multiplicado nos últimos anos.

Evidentemente, todos sofrem com a paralização. Os assaltos aumentam. Começam os saques. Mata-se mais. 

A população se sente insegura. O tradicional carnaval de rua é ameaçado.

Mas a situação de desequilíbrio entre as corporações policiais militares no País também gera, no dia a dia, falta de coesão social, com os baixos salários para profissão de risco de vida diário abrindo para muitos as portas da corrupção passiva e ativa.

Quando a greve eclode, tem-se um prejuízo facilmente verificável em curto espaço de tempo, que causa rejeição dos demais segmentos sociais. Mas, no dia a dia, as diferenças, como, por exemplo, de um policial no Distrito Federal ganhar mais que o dobro de um policial militar na Bahia, a falta de recursos não somente para pagar salários melhores, mas também para aparelhar a polícia para o combate efetivo ao crime, causam prejuízos maiores, porém não tão visíveis, para a sociedade. E, internamente, acabam desaguando na insatisfação das corporações.

Seria possível negar a uma classe da sociedade os fundamentos da dignidade humana e da valorização social do trabalho? Podem alguns brasileiros ter esses direitos e os demais não? Os familiares dos policiais militares, afetados diretamente pelo impacto econômico das restrições à luta por melhores condições não apenas de remuneração, mas de trabalho e segurança na luta contra o crime, podem ficar à margem das garantias constitucionais?

Embora não se possa, de acordo com a interpretação constitucional, afirmar que a vedação do artigo 142 contenha inconstitucionalidade intrassistêmica em confronto com os fundamentos da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho - pois é pacífico que tais normas devem ser consideradas exceções previstas constitucionalmente - , a interpretação, por outro princípio, deve parar aí. Ou seja, não é possível devaneio ampliativo à interpretação da palavra militar. Usada na CF no contexto de restrição de direito, deve ser tomada ao pé da letra. Nesse sentido, militar é apenas o membro das Forças Armadas. 

Evidentemente, cabe ao legislador resolver tal impasse, procurando harmonizar as normas e os fundamentos constitucionais e, acima de tudo, adequar ambas à realidade social e à evolução das relações do trabalho e dos direitos e garantias constitucionais, no âmbito do Estado de Direito.

É possível conceder o direito de greve a militares, policiais militares e policiais civis sem prejudicar a segurança ?

O não, nesse caso, parece mais preguiçoso do que exato.

Fórmulas podem e devem ser buscadas para garantir os direitos constitucionais a todos que vivem no País.

Como os cidadãos com direito à tutela da dignidade humana poderão ser protegidos por outros sem tal proteção?

A questão merece resposta das autoridades judiciais e legislativas.

José A. M. Cavalcante
OAB/SP 288.774
joseamcavalcante@adv.oabsp.org.br 


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